segunda-feira, 25 de junho de 2012

A resina do 12

Acordei na segunda-feira com uma sensação estranha.
O simples fato de ser segunda-feira já tornava tudo estranho. Mas não era isso. Era a sensação de que algo me faltava. Mas precisava levantar daquela cama que, todas as manhãs, parecia querer me seduzir a permanecer em sua companhia. A agenda estava cheia, e o dia seria longo no consultório.
Levantei-me ainda zonza de sono e aquela sensação estranha acompanhou-me ao banheiro. Tomei um banho para ver se despertava de vez. Só depois tive coragem de me encarar. 
Foi aí que descobri. Aquela sensação estranha de que algo me faltava...
Oh, meu Deus!!! Onde tinha ido parar a resina da mesial do meu 12?
Poderia haver desgraça maior a um dentista que um buraco daquele tamanho logo na sua comissão de frente?
As pernas me faltaram, o desespero apossou-se de mim e eu chorei... Chorei muito!!! O que eu ia fazer agora? Liguei para a Joana, a secretária que fielmente me acompanhava há anos.
- Joana, desmarque todos os meus pacientes da manhã!!! - disse atônita assim que ela atendeu ao telefone.
- O que houve, doutora?
- É uma emergência. Desmarque!
- Mas o que aconteceu? A senhora está bem? - insistiu ela, aflita.
- Estou bem. Só desmarque!
- Mas o que eu digo aos...
Eu já tinha desligado e já estava buscando outro nome na agenda.
- Cida, pelo amor de Deus, você precisa me atender agora de manhã!!!
Cida era minha melhor amiga desde os tempos de faculdade, e minha salvadora naquele momento difícil.
- O que houve? - ela perguntou.
- A resina do 12 sumiu... acordei sem ela... devo ter engolido à noite... me socorre!!!
Ela riu do meu desespero e disparou:
- Queria ver sua cara agora. Deve estar muito engraçada com esse buraco no dente.
Sim, as amigas podem ser cruéis. E acrescentou, para piorar meu drama:
- Desculpe-me amiga, mas hoje é o meu plantão na roça, e você sabe que lá nem resina tem. E o foto queimou há duas semanas. Por que você não liga pra Adriana?
Adriana era o primeiro nome na minha agenda.
- Perdoe-me amiga. Estou no ginecologista agora de manhã. Estarei no consultório à tarde. Aparece lá que eu faço.
Quem é que pode ficar com um buraco no dente ate a tarde?
A terceira tentativa não me atendeu e a quarta tinha ficado em casa porque o bebê teve  febre à noite.
A quinta tentativa foi com a Rute. Rute também tinha formado comigo mas nunca havia sido minha amiga. Séria, dificilmente sorria. Era uma mulher grande, muito branca, com os cabelos claros sempre bem presos para trás. Era uma mulher que não brincava, não contava piadas, e tinha a sensação que ela nunca se divertia. Levava a profissão extremamente a sério e, confesso, eu tinha  medo dela. Mas eu não tinha saída. Iria tentar a Rute.
- Alô, Rute... você está no consultório agora de manhã?
- Estou sim.
Graças a Deus! Contei-lhe meu drama e ela pediu que eu me dirigisse para lá imediatamente. Eu não sabia se relaxava porque ela iria me atender ou se ficava mais tensa justamente porque ela iria me atender.
Quando cheguei ela já estava me aguardando. Sentei-me na cadeira e, enquanto trocávamos umas amenidades, reparei todos os detalhes com olhos profissionais. Tudo meticulosamente limpo e organizado. Relaxei um pouco mais. Ela era a Rute, e eu não esperava dela menos do que isso. 
Ela me examinou e disse que passaria um pouquinho a broca para melhorar a retenção e não cair de novo.
- Então anestesie! - eu disse.
- Não precisa, é muito rasa.
- Nem vem, anestesie! - eu já pensava em todos os prolongamentos de odontoblastos que aquela broca iria cortar.
Ela percebeu que não teria jeito e pegou a carpule.
- Use prilocaína, por favor. Lidocaína me dá taquicardia. Ah, e não se esqueça do tópico.
Acho que ela começou a se arrepender de ter me atendido em plena segunda de manhã. Mas fez como eu pedi. Montou a carpule com prilocaína, aplicou o anestésico tópico e me perfurou com a agulha. Eu, mais acostumada com a sensação de perfurar do que de ser perfurada, fechei os olhos, agarrei no braço da cadeira e tentei pensar em outra coisa. Mas como se pensa em outra coisa quando se tem uma agulha dentro de você? Meu rosto foi ficando dormente, nariz, pálpebra inferior... Será que ela tinha atingido meu infra-orbitário?
Tirou a agulha e eu suspirei profundamente. Sorri com a boca torta. A Rute continuava séria.
- Agora vamos por o isolamento - ela disse.
- Não precisa, Rute, pode fazer sem. Eu prefiro.
Ela ia retrucar, mas suspirou e desistiu. Pegou uma broca esférica e colocou na caneta. Eu fechei meus olhos, pois não queria ver aquilo. Nem a altarrotação na minha boca nem a cara da Rute. 
Ela tinha a mão pesada, quase masculina, mas era rápida, técnica e habilidosa. Preparou, inseriu, fotopolimerizou, ajustou a mordida e disse a palavra que eu mais ansiava ouvir:
- Prontinho!
- Já? - menti, pois achei que tinha durado uma eternidade.
E ela séria:
- Já.
Levantei, sorri novamente com a boca torta, abracei para me despedir e disse:
- Você não imagina como eu te agradeço! Salvou meu dia hoje, Rute! Ninguém podia me atender e eu não sabia o que fazer...
- Ninguém podia? Você disse que ninguém podia?
- Sim... as meninas estavam ocupadas...
- Não, não estavam ocupadas. Você não sabia? Dentista foge de atender dentista. É o pior paciente que existe!



Esta é uma história de ficção. Qualquer semelhança com uma história real terá sido falsa, pois dentistas nem odeiam ir ao dentista...

Imagem extraída deste blog.



3 comentários:

  1. MILCA, PRECISO FAZER UMA RESINA NO MOLAR HÁ UM ANO, MAS A CORAGEM ME FALTA...KKKK QUER ME ATENDER NO SEU CONSULTÓRIO? Mas tem que ser prilocaína pq tenho prolapso... Rsss

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  2. "Dentista foge de atender dentista. É o pior paciente que existe!"
    .....................................................................
    "Qualquer semelhança com uma história real terá sido falsa, pois dentistas nem odeiam ir ao dentista..."


    m(-_-)m sei..... engana que eu gosto

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