quinta-feira, 19 de julho de 2012

Cianim

Texto de um grande amigo meu, gostei muito!

- Bora Mimoso, bora Rochedo! Tchô, tchô, tchô!

O carro de boi se arrastava molemente pela estrada. "Boi não tem pressa", costumava dizer o Bastião. O rangido tava um tom melancólico à tarde quente. A parelha ia calma e firmemente, quase não dando trabalho aos dois carreiros, um homem feito e um menino, ambos empunhando longas varas com um ferrão de ferro na ponta. As roupas velhas, esfarrapadas, gastas pelo uso da lida diária. Os gritos dos dois, um muito rouco, o outro muito agudo, eram mais para se sentirem úteis que para apressar a parelha.

O garoto andou um pouco mais à frente e abriu uma porteira. Esperou o carro passar e correu para alcançá-lo. Colocou-se ao lado do adulto, andando rápido para acompanhar as passadas do homem. Devia ter uns doze anos, mas aparentava bem menos. Magro, raquítico, quase que só pele e osso. A carne minguada só servindo para esconder uma ou outra ponta de osso. Era moreno de sol, os cabelos castanho-claros lisos e ensebados. E olhos muito verdes, aguados. Enormes. Era quase só olhos.

- Dodato? Pusquié que a gente morre?

O homem olhou para o garoto, entre divertido e incrédulo. Criança tinha mesmo uma coisa com pergunta difícil!

- Mas quié isso, Cianim? Que bestage é essa? Nóis morre pusque tem que morrê. Ingual boi morre.

- Mas boi morre pra gente cumê, Dodato... ninguém vai cumê nóis....

- Ahh... mas vai... os bicho come nóis, Cianim.

- Cuma?

- Cê chorô? Quando seu pai morreu?

- Que bicho?

O outro bateu de leve a ponta da vara de carrear na barriga do garoto e riu-se.

-As bichas... os verme tudo que mora dend'ocê, Cianim, quando o sujeito morre, elas come nóis e nóis vira terra.
  
- Mas num é nada! Eu num tenho bicha ni'uma! O Otero da butica deu um remédio pra mãe e ela mim deu e eu coloquei as bicha tudo pra fora, tou limpim, limpim!

- Pode inté tá, mas quano a gente morre, a gente vira cumida de minhoca, Cianim.

O moleque baixou a cabeça, pensativo. O carro fez uma curva em um barranco e os carreiros tiveram de usar os ferrões para guiar os bois e não deixar o carro muito próximo da pirambeira. Uns metros mais à frente a estrada abria-se numa planura novamente e eles voltaram a só acompanhar o trajeto. O ritmo monótono e triste do cantar do eixo do carro de boi marcando o passo.

- Cê chorô quando seu pai morreu, Dodato?

- Nem... eu mal tinha nascido. Tinha nem um ano quano ele morreu, quano o caminhão passou em cima dele.

- Cuma? O caminhão matou ele? Cuma?

- Ele tava na carroceria, aí o caminhão virou numa curva e ele caiu, a roda de trás passou em cima dele... morreu na hora.

- Siá Dina chorou?

- Sei lá... deve de ter chorado, ela é mais véia que eu. Mas pusquê cê quer sabê disso, Cianim?

- É que sumana passada eu fui vê o velório do Sô Onófi... aí vi o fio dele, o Crodomiro, chorano... E dizem que ele já inté matou um sujeito na faca, lá na rua das mulé... e ele tava chorano... era o pai dele...

- Né vergonha o camarada chorá não, Cianim. Num pode ficá é de bestage, mas chorá a morte de alguém que nóis gosta, seja gente ou inté bicho, nem é vergonha não. Povo fala que é coisa de mulé, mas quem perde pai, mãe, né vergonha chorá não. É coisa normal. Inté na bíbria tem ôme chorano. Uma veiz lêro isso pra mim.

- Hum.... queria que a mãe e o pai num morresse não, Dodato....

Deodato olhou para o garoto, desarmado pela confissão e pelo tom de voz triste do amigo.

- Mas pusquê, Cianim?

- Ahh... além da farta que cô sinti de'is dois... deve ser muito triste cê vivê toda uma vida só pra virá cumida de minhoca, né não?

Lionel Mota.


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